A FORMAÇÃO DO BRASIL
Portugal e Espanha dividiam o globo entre si pelo Tratado de Tordesilhas, em 1506,
acarretando repercussões para o mundo, particularmente para a América do Sul.
Criava-se, neste continente, com a partilha universal de terras e oceanos entre as duas potências européias, a fronteira fundamental, que viria a desempenhar papel preponderante na formação dos países meridionais do Novo Mundo. O Brasil era, nos primeiros tempos, ilha que se colocava entre as muitas terras de além-mar, a fornecer produtos primários à metrópole. Sua ocupação se fez beirando o litoral. O posicionamento das populações junto ao litoral nos primeiros tempos deve ser visto como a fi xação entre dois vazios: o continental e o oceânico.
No continente, a divisão de espaços configura-se a partir do eixo original de Tordesilhas e deforma-se, na história dos povos que herdaram as civilizações hispânica e lusíada, pela interferência de dois outros eixos geográficos,
um proximamente meridional e outro quase transversal, segundo os paralelos. O
primeiro desses eixos, a bacia hidrográfica do Prata, hospedava poderosos rivais em
suas margens e foi importante referência na formação das nacionalidades ribeirinhas; o segundo, a bacia do Amazonas, ofereceu ao espírito aventureiro, que se transmitia de Portugal ao Brasil, o caminho de penetração nos vazios da selva, para contestar Tordesilhas e desenhar um novo limite.
A esfera geográfica, nos aspectos político, econômico e social, entra no jogo histórico. Ainda que fracamente povoado, com seus núcleos populacionais concentrados no litoral, num período em que já a metrópole se encontrava subjugada por outras nações, o Brasil teve capacidade de defender seu território e até de expandi-lo para os vazios políticos, preservando e desenvolvendo a economia, constituindo-se como povo e forjando a nacionalidade, de tal forma que sua independência viria, em 1822, não como um beneplácito, mas como uma conquista oportuna.
Restava, da formação da nacionalidade, a litoraneidade como marca original. Mas não faltara aos pioneiros o sentido da ocupação necessária, para preservar a enorme faixa costeira e também para vencer os caminhos do interior, abrindo trilhas, vadeando rios, incorporando ao território a Grande Floresta e o Grande Rio. Todavia, o vetor continental terá deixado o Gigante de costas para o mar, desatento a seu chamado, esquecido de sua origem.
A MARITIMIDADE BRASILEIRA
Não há dúvida de que as condições que afetam o Poder Marítimo, acima descritas, podem
ser consideradas, no contexto planetário, como antecedentes de maritimidade: posição estratégica, confi guração física, extensão do território e do litoral em face da distribuição populacional, produção nacional, escoamento da produção, clima, uso do litoral e mentalidade marítima.
A discussão desses pressupostos revela que o País ocupa posição privilegiada entre as nações marítimas: posição geográfi ca e estratégica voltada para o Atlântico, eqüidistante dos centros mundiais de decisão; projetado como ponte para a África Austral, ligado ao resto do mundo por transporte marítimo, dotado de portos de águas profundas; extenso litoral intensamente povoado
na costa Sudeste e nas cidades mais importantes do Sul e do Nordeste; inserção entre os grandes produtores mundiais, evidenciando a necessidade de aumentar a capacidade de comunicação pelo mar; clima favorável. Quanto à questão da mentalidade marítima, pode-se afi rmar que ela existe no Brasil, ainda que de forma difusa e mal informada em certos aspectos.
A correta compreensão e disseminação desses condicionantes, nos campos político, econômico e social, a partir das pequenas comunidades, dos grupos organizados, das instituições, de todas as parcelas que constituem a Nação, promoverá a consciência do fato irrevogável de que o Brasil é um país marítimo. Também, o exercício da maritimidade não poderia ser realizado sem modelos ou estratégias de ação. Modelos ou estratégias para uma ação consistente, coerente com os condicionantes, que resultassem no aproveitamento das riquezas que o mar faculta. E tal exercício se faria mediante ações da sociedade e do governo, que incorporassem cada vez mais
a pluralidade da população brasileira. A realimentação desse processo permitiria constante reafi rmação das condições iniciais, especialmente no campo da mentalidade, de modo que se poderia amadurecer o País para a vocação marítima que lhe é inerente.
O MAR VISTO PELO BRASILEIRO
A Comissão Nacional Independente sobre os Mares (CNIO) decidiu realizar uma pesquisa
no Brasil de forma a cobrir todos os setores de interesse ligados ao mar, considerando, também,a poluição marinha e o Direito do Mar.
Elaborou questionário contendo 48 perguntas e contratou o Instituto Gallup de Opinião
Pública, que efetuou a pesquisa durante dois meses,em meados de 1997, cobrindo as áreas urbanas brasileiras e incluindo um universo de 2.130 entrevistas com adultos residentes em 111 cidades do litoral e do interior, dispersas por 18 estados.
As entrevistas distribuíram-se em termos de sexo, classe socioeconômica, grupo de idade,posição na família, tamanho da cidade e região geográfica.
Entre os diversos aspectos da relação dos brasileiros com o mar, abordados pela pesquisa,alguns devem ser enfatizados, em termos de resultado:
a) a grande maioria dos brasileiros dá importância ao mar: 80% considera o mar importante ou muito importante como fonte de alimentos e de lazer;
b) predomina a impressão de que as praias brasileiras estão poluídas devido ao lixo deixado pelos freqüentadores e aos esgotos urbanos;
c) aproximadamente metade dos brasileiros considera os manguezais importantes e estão
preocupados com sua preservação, principalmente por serem o hábitat de uma série de animais e fonte de alimentos para a população;
d) os brasileiros consideram importante conhecer melhor o mar, principalmente como fonte de alimentos e de recursos minerais (petróleo);
e) para a grande maioria dos brasileiros é necessário o máximo cuidado com o meio ambiente,quando se trata da exploração econômica do fundo do mar;
f) nove em cada dez brasileiros desconhecem o total da produção de petróleo do fundo
do mar; a exploração em terra é julgada mais importante do que no mar; quase a metade
dos brasileiros acha que as empresas petrolíferas não têm tido cuidado para prevenir a poluição marnha;
g) comparado à carne bovina e ao frango, o peixe é pouco consumido pelos brasileiros, devido principalmente ao preço e à resistência ao consumo;
h) para a maioria da população, o litoral brasileiro tem muitos peixes, embora se acredite que essa quantidade esteja diminuindo; devem ser incentivadas as criações de peixes, mariscos e crustáceos, como forma de aumentar a produção e baratear o custo;
i) a grande maioria dos brasileiros considera importante a existência de uma Marinha Mercante nacional para baratear custos; não obstante, é praticamente desconhecido o volume da exportação nacional feita por navios, assim como a porcentagem dessa exportação com navios de bandeira brasileira;
j) quatro em cada cinco brasileiros consideram muito importante a existência de uma indústria nacional de construção naval. Mais da metade (55%) julga que os navios construídos no Brasil são de qualidade igual ou superior aos fabricados no exterior;
l) cerca da metade dos brasileiros considera os portos nacionais inefi cientes, devendo-se tal situação às autoridades portuárias, à falta de investimentos e aos próprios portuários.
OS RESULTADOS MAIS INTERESSANTES
Mentalidade marítima
O mar é mais lembrado como fonte de alimentos (32%) e de lazer (17%), o que signifi ca que, embora considerado importante, o brasileiro médio visualiza o mar basicamente como fonte de pescado e de divertimento. De fato, apenas 12% consideram o mar importante como fonte energética (petróleo) e como meio de transporte.
Indústria naval, portos e Marinha Mercante Há consciência (48%) da crise que paira sobre a indústria naval, principalmente nas capitais, sendo que 25% responsabilizam o Governo por tal situação e 17% atribuem o problema à falta de investimentos.
Em contrapartida, quatro em cada cinco brasileiros acham que é muito necessário para
o País ter uma indústria de construção naval e possuir uma Marinha Mercante.
Exploração de petróleo off-shore Apenas 7% da população consideram o mar importante como fonte de petróleo. A exploração off-shore (no mar) é considerada menos importante do que a em terra. Apenas 7% sabem que a maior parte da produção total
é proveniente do fundo do mar.
A eficiência da Petrobras é reconhecida, implicitamente, pela produção: entre as dez atividades marítimas que foram listadas, a extração de petróleo despontou como a que está em melhor situação no País (58%). Entretanto, 46% dos brasileiros acham que as empresas petrolíferas não se preocupam em evitar a poluição no mar.
Pesca
Os brasileiros reconhecem que consomem mais carne bovina (85%) e mais carne de frango (87%) do que pescado.
Como justificativa para o baixo consumo do peixe, o brasileiro (principalmente o habitante do litoral) alinha: o seu preço (36%); a resistência ao seu consumo (20%) (não gostam, pode fazer mal à saúde, estraga facilmente, deixa mau cheiro etc.); a falta de hábito (18%) e a falta do produto (16%).
Poluição marinha
Constitui-se a terceira fonte de maior preocupação em relação ao mar (45%), de modo geral, e a primeira com respeito à poluição das praias (56%). As praias, na opinião dos brasileiros, estão poluídas em sua maioria, devendo-se o fato ao lixo dos
freqüentadores (45%), ao esgoto urbano, aos óleos e resíduos e à poluição dos rios.
O brasileiro tem consciência de que a poluição nas praias é prejudicial ao homem (91%),mesmo para quem não as freqüenta (68%).
Pesquisa oceanográfica Sete brasileiros, em cada dez, acreditam
que o maior conhecimento do mar pode trazer benefícios à humanidade. Mais do que isso, merece destaque o fato de que, para 42%, as descobertas nos oceanos e em seu fundo são mais importantes do que as espaciais (só favorecidas por 13% dos entrevistados).
Praias – O uso lúdico do mar
Além da preocupação com a poluição das praias, vista em tópico anterior, a pesquisa traduziu o valor lúdico atribuído pelos brasileiros ao mar. Cerca de 77% da população já foram alguma vez à praia, principalmente os da classe A (99%) e os de instrução superior (97%). Mesmo assim, 23% nunca foram à praia: os de menor poder aquisitivo (35%) e os de nível de instrução primária.
ESPORTE E LAZER
O estímulo à prática do esporte e do lazer ligados ao mar muito poderá contribuir para o desenvolvimento da mentalidade marítima, principalmente quando se considera um país com as dimensões e as características naturais do Brasil. Sua extensa e diversifi cada costa, aliando a beleza de enseadas e ilhas ao bom clima em quase toda sua extensão, é um verdadeiro paraíso para os esportes náuticos. Herdeiro dos
grandes navegadores portugueses, o povo brasileiro – que vive durante séculos à beira
do mar, dele retirando sustento e alimentação, nele realizando comércio e comunicação com outros países, – não consolidou, ainda, sua mentalidade marítima, como seria natural, por tantas condições e capacidades.
Com o advento da construção em fibra de vidro, os barcos de esporte e lazer, que
levavam meses e até mesmo anos em sua construção, passaram a ser obtidos em série, num processo rápido que fornece um produto de manutenção menos exigente e mais barata. Conjugada com planos econômicos que aumentaram o poder aquisitivo da classe média, a nova fase popularizou o esporte náutico, com a implantação de diversos estaleiros especializados, novos projetos, índices de nacionalização crescentes, mercado atraente para fabricantes de velas e acessórios náuticos em geral.
O mercado oferece diversos tipos e tamanhos de embarcações, acessíveis aos mais diversos orçamentos, e o brasileiro parece, afi nal, ter descoberto o mar como fonte de esporte e lazer.
Cabe ainda acrescentar o reconhecimento de que o brasileiro revela, sem dúvida, pendor para os esportes ligados ao mar, tais como o futebol de areia, o vôlei de praia, o futevôlei, o surfe, e o body boarding, entre outros.
CONSCIENTIZAÇÃO, PARCERIA E SOLIDARIEDADE
Os condicionantes da formação do Brasil acentuaram seu peso continental. Considerem-se, inicialmente,as contribuições humanas:
• primeiro, como vetor autóctone, o índio, que aqui estava quando Cabral fundeou em Porto Seguro. O estágio de sua civilização era basicamente de sobrevivência e
simples ocupação da terra, voltado para os espaços continentais.
Estão, ainda, presentes na imensidão amazônica, na face das populações pobres do litoral, como pescadores artesanais ou em outras atividades, e resistem, embora enfraquecidos, tutelados pelo Estado, buscando o reconhecimento e a demarcação de reservas.
• segundo, o vetor português, do século das descobertas, chegando e desembarcando em terras de além-mar, de abundantes riquezas vegetais e minerais, obrigando-se a consolidar a posse da terra, sob o assédio de potências européias.
• terceiro, o vetor escravo, proveniente da África em navios negreiros, para servir aos senhores da terra. Sua civilização na origem era também terrestre, continental, de sobrevivência e ocupação da terra, não comportando projeção marítima, ainda mais nas condições de submissão em que foram mantidos.
E depois, a necessidade que tinha Portugal de fi xar seu domínio no chão da nova terra. A criação de feitorias, antes da partilha do litoral em capitanias hereditárias, numa extensão menor que oitocentas léguas, menos da metade dos 8.500 quilômetros atuais. A instalação do Governo Geral. E a longa penetração continental, para Norte e para Oeste, na calha principal do Amazonas. A fi xação do limite exterior da fronteira terrestre, com o cinturão defensivo constituído de fortes. As bacias hidrográfi cas, propiciando caminhos naturais de colonização. E a continuidade
de tudo isso por um longo período, em que surgiam as primeiras vozes de afi rmação da
nacionalidade brasileira, de brancos, negros, índios, caboclos, mamelucos.
José Bonifácio de Andrada e Silva terá sido, talvez, o primeiro estadista brasileiro a assumir a consciência de nossa maritimidade:
“O Brasil é potência transatlântica...Que venham, pois, todos aqui comerciar, nada mais;
porém em pé de perfeita igualdade...”
Iluminados por tal inspiração, retomemos o caminho do Patriarca da Independência. Esta é a hora de despertar.
Salvar e recuperar o mar aberto e o litoral deste imenso país. O Arquipélago de São Pedro e São Paulo, a bela formação coralígena do Atol das Rocas, os botos de Fernando de Noronha, o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, as ilhas vulcânicas de Trindade e Martin Vaz.
Os extensos manguezais da costa do Amapá, a linda praia de Salinópolis, no Pará, o penedio forte de Manoel Luís, no Maranhão. Os verdes mares bravios do Mucuripe cearense, a rústica beleza da Redinha, em Natal, o magnífi co recorte de Itamaracá, em Pernambuco. A linha de recifes do litoral baiano, junto a Porto Seguro e Cumuruxatiba, a sinuosa entrada do porto de Vitória, o mar de Cabo Frio. As ilhas, enseadas, montanhas e praias da formosa Guanabara. E São Sebastião. E toda a magnífi ca costa Sul, até o limite extremo, das águas doces do arroio Chuí. Brasil do Orange ao Cassiporé, do Gurupi ao Calcanhar, do Cabo Branco a São Tomé,de Santa Marta ao Rio Grande.
Finalmente, a importância do mar para as fontes de energia alternativa, de marés, de gradiente térmico, de ondas. Para as riquezas minerais de hoje e do futuro, que o milênio vindouro há de trazer. Despertar para o uso pacífi co do mar alto, para que se percorram novos caminhos, para que se descubram novas trilhas, para que os bens
de todos sejam partilhados. E que esses bens se distribuam entre nações ricas e pobres.
A consciência, a parceria e a solidariedade no uso do mar ainda estão por ser assumidas integralmente.
Nossos índios foram perseguidos.
Nossos negros, humilhados pela escravidão hedionda.
Nossos brancos tinham saudade da velha terra. A brasilidade foi assim surgindo, no seio de contradições e dores. Foi preciso descobrir o chão, fi ncar o pé na estrada, abrir caminhos de terra.
Agora, é a hora do oceano. Nada mais nos impede de assumir, plenamente, o destino desta Pátria.
Tomar-se-ia emprestado de Fernando Pessoa o grande grito:
“No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! Pôr no mar, ao vento, às vagas
A minha vida!”
JORGE DE SOUZA CAMILLO
GERALDO GONDIM JUAÇABA FILHO
Nenhum comentário:
Postar um comentário